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O QUE AS CRIANÇAS PENSAM SOBRE O MUNDO?

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE CULTURA E EDUCAÇÃO NA INFÂNCIA (GEPCEI)

AGÊNCIA FINANCIADORA – CNPQ

O QUE AS CRIANÇAS PENSAM SOBRE O MUNDO?

Prof. Dr. Romilson Martins Siqueira 

 “(…) todas as manifestações da vida infantil não 

pretendem outra coisa senão conservar 

em si sentimentos essenciais.” 

Walter Benjamim 

RESUMO

PALAVRAS CHAVES: Infância – Criança – Conhecimento Científico 

O estudo do tema “O que as crianças pensam sobre o mundo” objetivou compreender quais os sentidos e significados atribuídos pelas crianças a alguns aspectos que revelaram o seu mundo físico e social. Entende-se por sentido a forma pessoal como cada um compreende o mundo, as relações, as experiências. Já significados referem-se à cultura, aos valores, as crenças, às ideias e pensamentos acordados e decididos nas relações coletivas. Para empreender este estudo, foram recortados alguns temas que ajudaram a elucidar o mundo físico (entendido a partir dos seus aspectos naturais, científicos, históricos e geográficos) e o mundo social (a sociedade, as relações humanas, a produção da cultura). Estes temas, agrupados em diferentes linhas de investigação no interior da pesquisa: 1) a criança e seus processos de educação e socialização; 2) a criança e a construção do conhecimento; 3) e a criança e a produção de cultura), foram problematizados no campo da relação entre sujeito-sociedade, objetividade-subjetividade. Mais do que as respostas das crianças, o problema que se coloca na construção dessa pesquisa, assim se constitui: que princípios, ideias e valores da sociedade contemporânea têm norteado as compreensões das crianças sobre a cultura, as relações humanas e a produção do conhecimento científico? A premissa que norteou esta investigação partiu do pressuposto de que as falas das crianças, expressas em suas compreensões de mundo, são vozes polifônicas constituídas pelo lugar que ela ocupa no mundo e em suas interações sociais. Este trabalho partiu dos estudos, mediações e diálogos da matriz epistemológica do Materialismo Histórico Dialético, da Psicologia Histórico Cultural e dos estudos no campo da Sociologia da Infância Crítica. Este referencial foi fundamental no entendimento da relação indivíduo e sociedade, particularmente no que se refere à compreensão da infância e da criança em seus processos de socialização. Mas porque partir dos estudos sobre aquilo que as crianças pensam e expressam em suas vozes? Segundo Miranda e Resende (2009), “palavras são realidades lógicas e históricas. Nos seus sentidos e significados, são sínteses produzidas por objetivações humanas em condições históricas determinadas e, enquanto tal, revelam ou velam intencionalidades, direções, projetos.” (p. 20) Sarmento & Pinto (1997) destacam que o estudo das crianças a partir de si mesmas permite vê-las “não apenas como um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças.” (p.25). Neste sentido ouvir o que as crianças têm a dizer sobre o mundo físico e social implica compreender duas categorias fundamentais neste projeto de pesquisa, a saber: trabalho e cultura. Ambas são materialmente constituídas com base nas questões objetivas e concretas da vida humana. Portanto, esta pesquisa concebe a criança como um sujeito cujas experiências de vida se dão na articulação entre suas especificidades naturais/biológicas de desenvolvimento e suas condições concretas de existência, social, cultural e historicamente determinada.

JUSTIFICATIVA

O projeto intitulado “o que as crianças pensam sobre o mundo” tem as crianças como sujeitos da pesquisa e suas compreensões sobre o mundo como objetos de estudo. Portanto, situa tanto seus sujeitos, quanto seu objeto, nas esferas da história e da cultura humana. Estudar o que as crianças pensam significa, também, problematizar e investigar a infância, uma vez que não há como deslocar as crianças do seu tempo da vida. Neste sentido, é preciso compreender como a sociedade contemporânea tem priorizado a produção do conhecimento, bem como construído suas concepções de infância: “somente a partir da delimitação desses dois conceitos se pode buscar esclarecer o entrelaçamento entre infância e cultura na contemporaneidade.” (SOUSA, 2004, p. 1)

Portanto, são objetivos desta pesquisa: a) conhecer a criança contemporânea a partir daquilo que expressa seus modos de viver e se posicionar no mundo; b) contribuir para a construção de políticas e práticas educativas que tenham como ponto de partida os interesses e necessidades de desenvolvimento e aprendizagem das crianças; c) constituir redes de estudos e pesquisas que qualifiquem os profissionais que trabalham com as temáticas da criança e da infância em diferentes contextos educativos, sejam eles escolares e não escolares. Como objeto e campo de estudo de diversas correntes epistemológicas, a ideia de infância, criança e sua produção simbólica têm sido, por muitos séculos, desenvolvida a partir de concepções e padrões de comportamentos pertinentes aos modelos sociais vigentes. Neste sentido, pensar na infância é pensar também o lugar que estes sujeitos ocupam nas relações sociais, a fim de compreender como se constituem os traços da autoridade, da cultura e da subjetividade neste tempo da vida. Em uma sociedade marcada pela exacerbação do mercado, do fetiche da mercadoria e de um intenso processo de individualização dos sujeitos em contraposição a sua individuação, faz sentido pensar como as crianças constroem seus sentidos e significados neste espaço social, auxiliando-as na construção do pensamento. Na perspectiva sócio-histórica, este processo se dá a partir do momento em que a criança constrói seus conhecimentos científicos do mundo. 

Para Vygotsky, a produção do conhecimento científico pela criança é resultado do “ato de pensamento complexo, que pressupõe atenção deliberada, memória lógica, capacidade de abstração e domínio dos signos. [neste sentido] (…) não se atribui aos conhecimentos científicos a característica de serem apenas conhecimentos vinculados à produção científica acadêmica ou aqueles armazenados pela cultura” (OLIVEIRA, 2001 p. 35)(grifos nossos) O estudo aqui proposto ajuda a elucidar as formas como se opera a racionalidade moderna, particularmente quando se busca compreender as medições entre passado e presente, entre universal e singular e reconhecer como, já na mais tenra infância, a sociedade vai educando, formando e reproduzindo suas formas de conceber o trabalho, as relações, a consciência, enfim, a identidade de um povo. Os projetos de socialização, educação e de formação humana, consolidados pela sociedade moderna, não se dão a conhecer sem que estes sejam situados no campo da produção material humana. 

A pesquisa sobre a compreensão que a criança tem em relação ao mundo em que ela vive nos instiga a pensar, ainda, sobre o processo de asujeitamento ao qual a infância, enquanto tempo social da vida foi, ao longo da história, prescrito em seu processo de reificação. A racionalização da ideia de infância ocultou sua verdadeira constituição, sua realidade e sua razão. A razão formalizada não poupou a criança nos seus procedimentos nem a infância em sua abstração. Seja por meio da indústria cultural, seja por meio das práticas sociais, o movimento de naturalização da infância tem se apresentado de forma extremamente sutil e em níveis cada vez mais fetichizados nos dias atuais: “o mecanismo que, durante décadas, sobrepôs as determinações sociais ao indivíduo de tal forma que terminou por aniquilá-lo, pode agora ser substituído por um encantamento subjetivista e particularista no qual a objetividade, a história e a universalidade não são mais do que adereços sem significação real” (RESENDE, 1999 p. 3) 

Essa formalização da razão tem implicado sempre a provisoriedade e a imediaticidade do conhecimento como indicadores de um estado de naturalização dos fenômenos e também pode ser percebido na própria construção da subjetividade da criança na infância. A perda do sentido de historicidade, de totalidade, de universalidade, implicada na naturalização da infância também faz parte do programa educativo da criança. A incapacidade de a sociedade reconhecer a infância como uma condição histórica, que possui raízes no trabalho e na ação humana, portanto, na cultura, significa a expressão de um movimento maior instalado nas relações sociais de formalização da razão e a-sujeitamento dos indivíduos. Neste sentido, a educação para a emancipação constitui fundamento necessário para um novo olhar sobre a criança e a infância na sociedade moderna. 

O estudo do tema “O que as crianças pensam sobre o mundo” objetiva compreender quais os sentidos e significados atribuídos pelas crianças a alguns aspectos que revelam o mundo físico e social. Entende-se por sentido a forma pessoal como cada um compreende o mundo, as relações, as experiências. Já os significados referem-se à cultura, aos valores, as crenças, às ideias e pensamentos acordados e decididos nas relações coletivas. (VYGOTSKY, 2007). 

Para empreender este estudo, serão recortados alguns temas que ajudam a elucidar o mundo físico (entendido a partir dos seus aspectos naturais, científicos, históricos e geográficos) e o mundo social (a sociedade, as relações humanas, a produção da cultura). Estes temas, agrupados em diferentes linhas de investigação no interior da pesquisa, serão problematizados e pesquisados por profissionais e estudantes de diferentes áreas do conhecimento, uma vez que o tema requer uma abordagem interdisciplinar de investigação e análise. 

Assim, é no campo da relação entre sujeito-sociedade que este trabalho procura se situar. Mais do que as respostas das crianças, uma vez que esta questão não se revolve na teoria, mas se desenvolve num processo em que o esclarecimento elucida a realidade, o problema que se coloca na construção desse trabalho, assim se constitui: que princípios, ideias e valores da sociedade contemporânea têm norteado as compreensões das crianças sobre a cultura, as relações humanas e a produção do conhecimento científico? A premissa que norteia este projeto de investigação parte do pressuposto de que as falas das crianças, expressas em suas compreensões de mundo, são vozes polifônicas constituídas pelo lugar que ela ocupa no mundo e em suas interações sociais. Referencial teórico A proposição de um referencial teórico para a construção de um processo de pesquisa requer a compreensão de como o objeto de estudo encontra-se situado na dinâmica da realidade social. 

Portanto, este trabalho parte dos estudos, mediações e diálogos entre os campos da Educação, da Psicologia Histórico-cultural, a Psicologia Social Crítica e da Sociologia da Infância. Este referencial é fundamental no entendimento da relação indivíduo e sociedade, particularmente no que se refere à compreensão da infância e da criança em seus processos de socialização. Isto significa que este estudo situa tanto o seu objeto, quanto seus sujeitos, no plano da história, da cultura e da subjetividade humana, uma vez que suas aproximações teóricas buscam compreender a relação entre racionalidade e subjetividade. Da mesma forma, parte de um método de abordagem, análise e interpretação do empírico que dê conta da apreensão dos fenômenos em sua historicidade. 

A oportunidade de captar a história, o movimento do real e demonstrar sua dinamicidade, requer uma postura que considera a realidade social como extremamente complexa, contraditória, constituída por diferentes nexos, relações, processos e estruturas que não se deixam a conhecer pela observação empírica convencional. Portanto, pensar dialeticamente é questionar a realidade na sua aparência fenomênica em busca de sua essência: o concreto pensado. Esta postura de investigação procura compreender as mediações existentes nas categorias analisadas, uma vez que o objeto não se dá a conhecer imediatamente. Neste sentido, é preciso apreender as tensões que se expressam nos movimentos de aparência x essência, todo x parte, singular x universal, passado x presente. 

De início, portanto, já se coloca uma problemática importante no contexto desse estudo: se o tempo e o cenário em que se vive hoje são marcados pelos processos de (des)razão, quais são as possibilidades de se pensar a infância e a criança contemporâneas partindo de outra lógica? Não haveria outro espaço e sentido senão aqueles marcados pela crítica, pela autonomia e pela razão. Mas porque partir dos estudos sobre aquilo que as crianças pensam e expressam em suas vozes? Segundo Miranda e Resende (2009), “palavras são realidades lógicas e históricas. Nos seus sentidos e significados, são sínteses produzidas por objetivações humanas em condições históricas determinadas e, enquanto tal, revelam ou velam intencionalidades, direções, projetos.” (p. 201) 

Neste caso, a elucidação dos sentidos e significados daquilo que as crianças compreendem do mundo nos remete à “percepção de que as palavras podem se referir a várias coisas e a nenhuma ao mesmo tempo.” (RESENDE, 2001, p. 533). Neste sentido, ouvir o que as crianças têm a dizer sobre o mundo físico e social implica compreender duas categorias fundamentais neste projeto de pesquisa, a saber: trabalho e cultura. O conceito de trabalho aqui defendido corresponde à ideia de ação humana transformadora. Assim, o trabalho se constitui enquanto produto da práxis humana, uma vez que é no e pelo trabalho que o homem se faz homem. Pelo trabalho o homem age, transforma, cria e recria as condições que garantem os meios para a sua subsistência humana. 

É por meio de sua ação que ele pensa a realidade, constrói e reconstrói significados, em um movimento teórico-prático, onde se estabelece a articulação entre consciência-mundo, objetividade-subjetividade e vontade-ação. Ouvir a voz é, assim, mais do que a expressão literal de um acto de auscultação verbal (que, aliás, não deixa também de ser) uma metonímia que remete para um sentido mais geral de comunicação dialógica com as crianças, colhendo as suas diversificadas formas de expressão.” (SARMENTO, 2006, p. 1) São articulações que possibilitam ao homem a configuração do seu agir humano no amplo aspecto em que se encontra a sua relação com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. O trabalho se constitui como essência da sociabilidade humana na qual o homem supera sua condição de ser natural e se converte em ser social. É nesse campo que a universalidade da infância se constitui como um tempo da vida permanente e inerente à própria constituição da humanidade. 

Não haveria homem sem História e trabalho, como não haveria homem sem o tempo da infância: “(…) somente porque existe uma infância do homem (…) somente por isso existe história, somente por isso o homem é um ser histórico.” (AGAMBEN, 2008, p.64) Em Marx (2001), a ação transformadora da natureza é responsável pela autocriação do ser social, num ato de construção da omnilateralidade humana. Como condição ontológica, o trabalho constitui os sujeitos históricos. Já em relação à cultura, é preciso situar essa última na perspectiva da condição humana. Encontram-se, aqui, as dimensões objetivas e subjetivas inerentes à cultura humana. Portanto, não há como separar as condições políticas, culturais e materiais. Elas são, ao mesmo tempo, constituintes da e constituídas pela vida. 

Para Zannella (2001), “em uma perspectiva dialética, a cultura resulta da atividade humana [objetivada pelo trabalho] conjunta; por sua vez, as características singulares de cada indivíduo em particular também resultam da atividade social, posto que por seu intermédio o homem se objetiva e concomitantemente se subjetiva, ou seja, se constitui-se como sujeito.” Para Horkheimer, “toda cultura é, assim, incluída na dinâmica histórica; suas esferas, portanto os hábitos, costumes, arte, religião e filosofia, em seu entrelaçamento, sempre constituem fatores dinâmicos na conservação ou na ruptura de uma determinada estrutura social. A própria cultura é, a cada momento isolado, um conjunto de forças na alternação das culturas” (1990, p.181), uma vez que este processo é resultado das condições históricas construídas pela evolução e pela transformação da ação humana na natureza. Portanto, a cultura é produzida na História e sob diferentes condições econômicas de produção. Este projeto reitera o lugar da cultura como produção da ação histórica do homem na transformação da natureza, portanto, de si mesmo. Neste sentido, a cultura produzida pelas crianças também se traduzem em culturas da infância. 

Por ser histórica, portanto, fruto da ação humana, a “cultura é um termo emaranhado que, ao reunir tantas atividades e atributos num só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específicas das relações sociais e de trabalho.” (THOMPSON, 1998, p. 22). Da mesma forma, “as culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo.” (SARMENTO, 2004) 

Assim, não é possível pensar o objeto de estudo deste projeto sem considerar aquilo que expressa a constituição da criança em si e do seu tempo da vida. Uma primeira advertência necessária neste projeto refere-se àquilo que se nomeia6 como infância e criança. Neste caso, muitos estudos justapõem as concepções de criança e de infância como intercambiáveis. Para muitos autores, falar da infância é falar da criança e vice-versa, como se, ao fim, falassem de tudo. Contrária a essa perspectiva está a afirmação de que criança e infância são interdependentes, já que não é possível deixar de apreender na criança a infância, muito menos de reconhecer que na infância há uma expressão da criança, mas as duas categorias, se se aproximam e se afirmam, também se afastam e se negam e não são as mesmas. Ambas se constituem como categorias históricas e sociais, mas a criança revela o indivíduo e a infância revela o tempo social e histórico em que esse indivíduo se constitui e constrói a sua história. Em relação à infância, há que se destacar que, sem revelar a tensão entre natural-social, perde-se as noções classe, de tempo e desenvolvimento e acaba por abstrair aquilo que constitui a sua universalidade e a sua singularidade da infância. 

Nesse caso, não há uma concepção de infância que possa ser universalizada, uma vez que não existe uma única infância, mas infâncias no plural e que o terreno onde estas infâncias são construídas se dá na contradição das classes e pelo que o modo econômico de produção enseja em relação às formas de sociabilidade humana. A pergunta a ser feita é: de qual infância se fala, para atender a qual projeto social e em que período histórico? Uma consideração crítica a ser feita é que as discussões sobre a infância precisam ser construídas no campo da sociedade de classe, ou seja, no campo da disputa social.

Nessa lógica, a infância, em qualquer época ou lugar, é uma condição de classe social. Por ser histórica e social, essa concepção não pode prescindir das análises que geram os processos de exclusão da infância no contexto da vida material, processos marcados pela contradição de diferentes projetos. Já a criança, esta precisa ser pensada a partir do conceito de sujeito cuja expressão se dá na sua “particularidade histórica e universalidade humana (…) como um ser em construção em condições específicas e determinadas.” (RESENDE, 2007, p. 30). Nesse lugar, a criança se revela como criança e não como uma representação social materializada em uma concepção. Pensar a criança dessa forma propõe não determinar o foco de análise para o extremo do que seria indivíduo ou sociedade, mas tensionar o lugar onde ambos possam se constituir reciprocamente. Não há indivíduo sem sociedade, como não há sociedade sem indivíduo. Portanto, nos estudos deste projeto, a expressão e compreensão do pensamento e voz da criança só tem sentido quando se concebe este sujeito como: um ser histórico – cuja noção de historicidade e história passa a ser compreendida como processo dinâmico e cultural que só faz sentido se pensada como produção humana num continuum que não se traduz no tempo, mas que é marcada pelo processo de constituição dos indivíduos na sociedade. Como criança de classe – uma vez que deve ser vista numa determinada condição de classe social, a partir de determinado modo de produção. Como indivíduo social – que se reconhece na sua condição de ser genérico e, ao mesmo tempo, ser individual. Neste campo a criança produz aquilo que chamamos de sociabilidade, mediada pela produção de necessidades humanas e pela produção da cultura. Como um ser cultural – cuja proposição só pode ser tomada como produto e produtora de cultura se for considerado que, na constituição de suas identidades, essa característica implica o contato com o outro, com o diferente, com o não idêntico. Como sujeito da experiência subjetiva – pressuposto que implica a criança viver experiências significativas e ser capaz de fazê-lo situadas num tempo histórico que pode ser rememorado. 

Compreender a criança nas perspectivas aqui esboçadas, significa, segundo Benjamin (1994), “escovar a história a contrapelo” e lutar contra a barbárie, porque “como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.” (p.225). Neste sentido, este projeto de pesquisa concebe a criança como um sujeito cujas experiências de vida se dão na articulação entre suas especificidades naturais/biológicas de desenvolvimento e suas condições concretas de existência, social, cultural e historicamente determinada. Mas por que tomar aquilo que as criança pensam como objeto de estudo? 

Segundo Qvortrup (1995), “a infância constitui realmente um segmento da sociedade (…) ” (p. 8), pressuposto que permite o estudo da infância e da criança num movimento dialético: da criança em si para a sociedade em geral. Isto significa dizer que “a realidade social das crianças passa a ser, na verdade, o caminho pelo qual tanto a sociedade como a criança passam a ser entendidas (…) as crianças constituem uma porta de entrada fundamental para a compreensão da realidade (…)” (SARMENTO, 2008, p. 18). Este movimento pode ser compreendido, ainda, no que a Sociologia da Infância defende como um dos seus fundamentos: estudar a criança a partir de seus próprios méritos. Os estudos de Jenks (2004) indicam que a infância não tem sido tomada como categoria de análise social, ou seja, tanto seus sujeitos quanto a possibilidade de se compreender a sociedade pelo estudo da infância têm sido abstraídos das análises sociais. Mas como tomar os estudos da infância ou da criança por seu próprio mérito? Para Qvortrup (1995), essa tarefa implica dois movimentos: metodológico e epistemológico. Do ponto de vista metodológico, “adotar o ponto de vista das crianças significa que os pesquisadores descrevem, explicam e interpretam aspectos do universo das crianças recorrendo a mecanismos de pesquisa que desenvolvem exatamente com essa finalidade (…)” (p.6). Do ponto de vista epistemológico, “estudar a infância por seu próprio mérito significa não misturá-la com outras questões ou agentes como, por exemplo, a família.” (p.6) 

A postura epistemológica empreendida pelo autor significa um esforço de ruptura com o que tradicionalmente vem ocorrendo ao estudar a criança e a infância somente a partir da sociologia da família (e seus processos de familiarização) ou da educação (em seus processos de escolarização). Segundo Sarmento & Pinto (1997), o estudo das crianças a partir de si mesmas permite interpretar suas representações sociais e vê-las “não apenas como um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças.” (p.25). Uma primeira consideração a ser feita em relação a essas teses é sobre o pressuposto defendido por Qvortrup (2001) de que a infância é “parte integrante da sociedade e da sua divisão de trabalho”, e de que está “exposta às mesmas forças macrosociais que a adultez (e.g. forças econômicas e institucionais).” 

Ao ouvir o que as crianças têm a dizer sobre o mundo o que se quer, neste projeto, não é reafirmar um certo discurso ufanista de exacerbação do protagonismo infantil. Em tempos em que a relação da infância e da criança são mediadas pela posição adultocêntrica, há que se perguntar: protagonista em relação a quê? O que de fato esse protagonismo pode alterar no cenário social? A experiência social tem mostrado que as crianças não são consideradas nem na sua expressão e voz quanto menos em suas ações. Portanto, o que significa o protagonismo infantil? De modo geral, a ideia de protagonismo é bastante polissêmica, o que a torna às vezes intercambiável pela ideia de participação. Assim, “ao abordar o que chamamos de “protagonismo infantil”, é importante destacar que se trata de um processo social e que existem experiências que têm aplicado mecanismos próprios para o seu desenvolvimento. Neste documento trataremos de sintetizá-los, agrupando-os em três aspectos, que podemos categorizar como as principais fontes e partes do processo: a organização infantil, a participação infantil e a expressão infantil.” (GAITÁN, 1998, p.85) (Tradução nossa).

Em tempos de barbárie, que o melhor interesse da criança seja considerado para protegê-la não se discute. Entretanto, não se pode atribuir ao protagonismo infantil um papel de ação e intervenção sociais, tarefa que a criança ainda não pode desempenhar em função das limitações que os aspectos econômicos, políticos e culturais lhe impõem. 

Para Gohn (2005), assumir uma postura protagonista na sociedade implica posicionamento coletivo em que “deve-se ter como referência quem são os atores envolvidos, como se transformam em sujeitos políticos, que forças sociopolíticas expressam, qual o projeto de sociedade que estão construindo ou abraçam, qual a cultura política que fundamenta seus discursos e práticas, que redes criam e articulam, quais as relações com conjuntos sociopolíticos maiores, etc” (GOHN, 2005, p.10). Portanto, o protagonismo não pode vincular-se à ação individual, mas à coletiva e política. Esse processo implica ainda o posicionamento político em processos de negociação, divergência, acordos, proposições e enfrentamentos, ações que as crianças ainda não vivenciaram na infância. Todavia, o que se quer aqui neste projeto é que a criança seja sujeito da pesquisa e não objeto da mesma. Isso significa tomá-la como interlocutora principal, portanto, protagonista, em que seu pensamento, sua voz e suas ações são consideradas como importantes no processo de apreensão e conhecimento do mundo. Significa, portanto, dar voz às crianças na interpretação dos seus mundos sociais e culturais, uma vez que parte-se do

É fazer, na prática, a ideia da criança como sujeitos de direito e, portanto, deve-se designar diferentes papéis a componentes distintos da sociedade: criança, juventude, autoridades, família, sectores não organizados, sociedade civil, entidades, etc.” (GAITÁN, 1998, p. 85)(Tradução nossa) (Grifos da autora). pressuposto de que as crianças são actores sociais competentes para a interpretação da realidade social. 

Neste sentido, a voz da criança, como objeto de estudo desta pesquisa, é sempre uma voz polifônica. Na etimologia da palavra, polifonia significa “muitos sons”. Neste contexto do projeto de pesquisa significa dizer que a voz da criança é repleta de muitas visões de mundo, muitas palavras, muitas histórias, de várias origens, que dialogicamente se fundam no social. Um social não homogêneo, não transparente: um social ideologicamente opaco, constituído de signos, que é preciso desvendar para “des-cobrir” o mundo. É fundamental salientar que essas vozes, sendo sociais, estão inseridas no que Bakhtin (1981) chamou de “polifonia”, ao analisar o caráter autoral coletivo, pois o que é expresso pela criança não pertence unicamente a ela: “em suas falas e imagens, ecoam simultaneamente outras vozes, distantes, próximas e até imperceptíveis. São as vozes da história política, cultural e econômica que os nomeia como crianças (…)” (VALDERRUTÉN, 2008, p. 3). 

Para Sarmento (2006) é preciso “ouvir a voz das crianças”. Esta expressão condensa todo um programa, simultaneamente teórico, epistemológico e político: O programa teórico assenta na constatação de que as crianças têm sido silenciadas na afirmação da sua diferença face aos adultos, e na expressão autónoma dos seus modos de compreensão e interpretação do mundo; estudar as crianças como actores sociais de pleno direito, a partir do seu próprio campo, e analisar a infância como categoria social do tipo geracional é o objectivo a que se tem proposto a Sociologia da Infância, para quem “ouvir a voz das crianças” se constitui mesmo como uma directriz vertebradora na compreensão de factos e dinâmicas sociais onde as crianças contam (e.g. Qvortrup, 1991; Corsaro, 1997; James, Jenks, Prout, 1998; Sirota, 1998; Mayal, 2002). Assim,

O programa epistemológico manifesta-se na ideia, cara à abordagem sócio-antropológica da infância, de que entre o mundo adulto e as crianças existe uma diferença que não é apenas de nível de registo ou de maturidade comunicativa, mas radica na alteridade da infância, insusceptível de ser resgatada pela memória que os adultos possuem das crianças que foram, mas que se exprime na peculiar organização do simbólico que a mente infantil e as culturas da infância proporcionam. O programa político exprime-se na constatação de que as crianças permanecem excessivamente afastadas dos núcleos centrais de decisão sobre aspectos que dizem respeito às condições colectivas de existência e que esse afastamento, sendo a expressão da dominação adulta, é um modo de hegemonia e de controlo, cujo resgate não encontra outra possibilidade senão precisamente por tornar presente a voz das crianças na participação 8 O termo polifonia pode ser encontrado nos estudos de Bakhtin (1992). Aqui neste projeto o termo será utilizado apenas para justificar a relação entre a voz da criança e os contextos macro-sociais. social e na decisão política (e.g. Lee, 2001). (SARMENTO, produções simbólicas) (p. 1) 

O que se propõe neste projeto de pesquisa é mais do que ouvir as crianças sobre o que elas têm a dizer sobre as coisas. É, portanto, empreender um processo de pesquisa não sobre as crianças, mas, com as crianças. Isto implica, acima de tudo, todo um esforço de pesquisar com as crianças e não sobre a criança. Neste movimento, intenta-se construir conhecimentos teóricos capazes de contribuir na construção dos processos de alteridade da criança. 

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