Categorias de Estudo: cultura, culturas infantis, cultura da infância, vivências, experiências estéticas, experiência
O GEPCEI compreende que as experiências estéticas das crianças se constituem no campo da cultura humana, sendo as crianças produto e produtoras de cultura. Concebemos a cultura como atividade e produção humana histórica e objetivamente determinada. Assim, a totalidade da produção humana é conceituada como cultura. Ela é um dos elementos que caracteriza o modo de ser no mundo, meio pelo qual desenvolvemos e manifestamos nossa subjetividade. Particularmente no que concerne à capacidade de produzir cultura e se autoproduzir, tal questão recoloca a criança na condição de um ser social que se apropria da sua essência humana e se reconhece como verdadeiramente humano. O ato de humanização da espécie humana, e da criança, só se efetiva à medida que o indivíduo exercita sua capacidade de construir atividades lúcidas, intencionais e conscientes. Portanto, a criança só pode ser tomada como produto e produtora de cultura se for considerado que, na constituição de suas identidades, essa característica implica o contato com o outro, com o diferente, com o não idêntico.
Por isso, considerar a criança como ser cultural requer entender o que é cultura, se existe uma cultura específica ou uma cultura geral, e compreender o papel das crianças naquilo que se denomina cultura infantil. Essas e muitas outras questões têm sido estudadas por diferentes áreas do conhecimento e recortes epistemológicos. Todavia, é necessário compreender a cultura como expressão de um movimento que se dá no porvir e que articula tempos, espaços e produções materiais e simbólicas.
Entendendo a criança como produtora de cultura, é preciso situar essa última na perspectiva da condição humana. Encontram-se, aqui, as dimensões objetivas e subjetivas inerentes à cultura humana. Portanto, não há como separar as condições políticas, culturais e materiais. Elas são, ao mesmo tempo, constituintes da e constituídas pela vida humana. Para Horkheimer, “toda cultura é, assim, incluída na dinâmica histórica; suas esferas, portanto os hábitos, costumes, arte, religião e filosofia, em seu entrelaçamento, sempre constituem fatores dinâmicos na conservação ou na ruptura de uma determinada estrutura social. A própria cultura é, a cada momento isolado, um conjunto de forças na alternação das culturas.” (1990, p.181). Ainda ressalta que a produção da cultura é
resultado das condições históricas construídas pela evolução e pela transformação da ação humana na natureza.
Portanto, a cultura é produzida na História e sob diferentes condições econômicas de produção. O conceito de cultura definido neste trabalho avança, então, do que foi encontrado nas produções analisadas, uma vez que, em sua maioria, esse conceito apenas demarcou o lugar da criança como produto e produtora de uma “cultura infantil”, sem especificar em que condições tal atividade pudesse se processar. Na verdade, caberia outro tensionamento: haveria uma cultura infantil deslocada ou diferente daquilo que se produz da cultura geral? Mais do que avançar na definição conceitual, este trabalho reitera o lugar da cultura como produção da ação histórica do homem na transformação da natureza, portanto, de si mesmo.
Por ser histórica, portanto, fruto da ação humana, a “cultura é um termo emaranhado que, ao reunir tantas atividades e atributos num só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específicas das relações sociais e de trabalho.” (THOMPSON, 1998, p. 22). Dessa maneira, ela deve revelar os conflitos, as divergências e as contradições que se processam no ato de produção cultural humana. Velada no campo daquilo que constitui o costume comum e naquilo que implica o processo geracional, a cultura perde seu sentido político e converte-se em ação instrumentalizada.
Cabe nesse momento uma questão importante? As crianças apenas reproduzem a cultura adulta? Haveria lugar para uma cultura infantil ou culturas infantis em um contexto fora da cultura humana geral? O que as crianças fazem para subverter a ordem e produzir a contra-cultura? Essas são questões que orientam os trabalhos do GEPCEI, uma vez as crianças “as crianças não se limitam a imitar ou interiorizar o mundo em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a participação dela”. (CORSARO, 2011, p. 36)
Dentro dessa perspectiva a participação das crianças é ativa na construção e transformação do cenário cultural e social, ou seja, elas não apenas consomem cultura, como também a produzem. Nesse contexto, a infância é encarada como um fenômeno social, resultante de ações coletivas entre crianças e adultos (geracional) e criança com criança (pares). Para a sociologia da infância defendida por Jenkns (1996), Corsaro
(1997), Montandon (1998), Sirota (1998) as crianças deixam de ser um objeto manipulável e passam a ser atores. “[…] as crianças afetam e são afetadas pela sociedade.” (CORSARO, 2011, p. 57).
Segundo o Corsado, é preciso falar de reprodução interpretativa. Esse termo usado pelo autor, é capaz de abranger todos os aspectos inovadores e criativos da participação da criança na sociedade. Utiliza a metáfora da teia de aranha para exemplificar a integração e a participação da criança, tanto a cultura das crianças quanto a culturas dos adultos. “[…] a criança está sempre participando de e integrando duas culturas –[…]- e essas culturas são completamente interligadas.” (CORSARO, 2011, p. 40)
A autonomia das formas culturais da infância tem sido sustentada pelos estudos sociológicos (ver Corsaro, 1997; Prout, 2000; Gaitán, 2006; Denzin, 1977). Assim, as culturas da infância “constituem-se nas interações de pares entre crianças e adultos, estruturando-se nessas relações formas e conteúdos representacionais distintos.” (SARMENTO, 2004, p. 21). Para o autor, as culturas da infância são expressões da sociedade no qual a criança se insere, contudo, ela exprime a cultura de maneira diferente do adulto através da representação e simbolização do mundo.
A experiência cultural dessas crianças e os aspectos simbólicos trazidos das interações entre seus pares no ambiente familiar do assentamento requer o reconhecimento de estratégias de pertença das crianças sem terrinhas e as urbanas em seus contextos sociais, pois a apropriação e reprodução criativa e coletiva, tal como aponta Corsaro (2011), contribuem para a inovação da cultura de pares.
Portanto, falamos das culturas infantis como expressão plural daquilo que as crianças produzem no mundo e se vêem naquilo que produzem com significação. Assim defendemos a arte a as experiências estéticas como uma possibilidade de construção do conhecimento numa perspectiva capaz de trazer sentidos e significados para o conhecimento produzido pelas crianças, ao contrário de submetê-las à cópias e repetições, num sentido instrumentalizado e reificado.
O trabalho com a formação cultura das crianças precisa oportunizá-las experiências que possibilitem a construção do conhecimento a partir de uma perspectiva crítica, criativa e inventiva de si mesmo e do mundo. Uma forma de conhecimento, expressão e linguagem capaz de trazer sentidos e significados para o conhecimento produzido pelas crianças. Assim é preciso “promover a aproximação das crianças aos diferentes códigos estéticos, ampliando seus repertórios vivenciais e culturais” (OSTETTO, 2010, p. 28).
A cultura amplia o olha e a sensibilidade das crianças. Por isso é preciso romper com uma perspectiva de cultura pela e na reprodução. O GEPCEI defende que as crianças possam vivenciar e experimentar o contato com todas as linguagens e formas de expressão humana. Toma-se aqui os estudos de Benjamin (1987; 1994) e Larossa (2002) como interlocutores importantes para pensarmos a questão da história, da oralidade, das narrativas, da produção humana. Para Larrosa Bondía (2002, p. 21), “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Desta maneira, a experiência está diretamente relacionada com o homem, aliás, só se realiza pelo homem.
Portanto, no GEPCEI as contribuições teóricas de Laraia (2001), Clifford Geertz (1989); Raymond Williams (2000); Alfredo Veiga-Neto (2003), dentre outros, são fundamentais para a compreensão da cultura. Já do ponto de vista das culturas infantis, defendemos a ideia de uma criança que produz sua cultura que, por sua vez, é marcada por diferentes espaços, ritos e modos simbólicos que acabam sendo constituídos e constituintes no interior dessas relações. Nesse sentido, as produções humanas referenciadas como cultura precisam ser analisadas em seu contexto estrutural e econômico. A defesa da ideia de que existe uma cultura da infância parte do entendimento de que é necessário reafirmar aquilo que há de específico, inerente e particular no modo de ser e viver das crianças, mas não no sentido de segregá-las, supervalorizá-las ou apartá-las da cultura humana em geral e da relação com os adultos. Da mesma forma, o pressuposto deste trabalho entende a cultura da infância como parte constituinte e constituída da cultura humana. Por esta razão, há que se tencionar aqui o debate sobre cultura-cultura da infância
Para Sarmento (2006) os conteúdos elaborados a respeito das culturas infantis são produzidos numa relação de interdependência com as culturas societais, que, por sua vez, são atravessadas por contradições, por relações de classe e de gênero que ofuscam os modos de significação infantil. Porém, para o autor, a marca da geração inscreve nos elementos simbólicos e materiais contidos na história o lugar das crianças na produção de cultura. Portanto, as diferenças entre a cultura humana inscrita por adultos e a cultura da infância são construídas historicamente, dialética e reciprocamente e produzem efeitos nas representações que se fazem sobre crianças.
As culturas infantis partem, portanto, do entendimento de que as crianças precisam ser consideradas em sua capacidade transformadora e situadas no contexto
social, considerando a realidade da sociedade capitalista contemporânea, cuja lógica está marcada pelas contradições e desigualdades sociais presentes nas diversas realidades.
Para Sarmento (2004), há na cultura da infância, além da expressão do modo particular que as crianças exteriorizam sua infância, uma espécie de “universalidade”. É exatamente na tensão entre universal e singular que reside a fertilidade daquilo que o autor entende por cultura da infância. Nesse sentido, Sarmento (2004) argumenta que, por se tratar de uma construção social, a cultura da infância delimita-se conforme o tempo e o espaço em que as relações sociais na sociedade são constituídas e difundidas, ressaltando que o tempo e o espaço dessas relações não são marcados por períodos e fases cronológicas.
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