Categorias de Estudo: socialização, socialidade, geração, sociologia da infância, invisibilização, família, escola.
O GECPEI compreende que os processos de socialização da criança se constituem num esforço teórico/social, a fim de compreender a criança e a infância numa perspectiva mais histórica, portanto, de construção social e coletiva. Assim, sinaliza que a Sociologia da Infância tem se estruturado num plano teórico que pode contribuir para recolocar o status social da infância:
Ariés (1961), ao inaugurar a visão da infância como uma construção social, dependente ao mesmo tempo do contexto social e do discurso intelectual´ (SIROTA, 2002 p.10), lança as bases para a mudança paradigmática proposta, nas décadas de 1980 e 1990, pelo Novos Estudos sobre a Infância (na tradição anglo-saxônica) ou Sociologia da Infância (na tradição francófona): alçar a infância à condição de objeto legítimo das Ciências Sociais; tratar a infância como uma construção social; romper com o modelo de interpretação de desenvolvimento humano da Psicologia (por exemplo, o piagetiano) “impelido para uma estrutura de racionalização adulta permanentemente definida” (JENKS, 2002, p. 212); atacar o conceito de socialização da criança predominante na Sociologia e na Psicologia; conceber a criança como ator social. Essa nova perspectiva de compreensão da infância rompeu com três atributos até então vigentes: racionalidade, universalização e naturalização.” (ROSEMBERG, 2008, p. 302)
Entre os postulados da “Sociologia da Infância” descritos por Rosemberg (2008), a crítica ao conceito de socialização até então defendido pela Sociologia e pela Psicologia, talvez seja o que mais traduz os esforços teóricos desse campo em construção. Essa crítica se fundamenta na perspectiva de conceber a criança e a infância não como sujeitos passivos e reprodutores da aprendizagem na relação com o adulto, mas como sujeitos também produtores de significações.
Em se tratando da questão da socialização infantil, os autores consideram que ser “criança como ator social” implica considerar aquilo que se produz na relação entre adultos-crianças, crianças-crianças e adultos-adultos. Para Nascimento (2009), às crianças é destinado um papel que corresponde à capacidade de ser ativa (produtora e reprodutora) dos “seus processos de socialização, interpretação e significação do mundo.” (p. 158).
A ação da criança como ator social em seus processos de socialização incorpora práticas que alteram tempos, espaços e relações sociais, seja em ambientes educativos, seja em práticas sociais mais amplas. Assim, “a emancipação das crianças, isto é, a vivência da condição de autor e ator social de direitos no espaço de educação coletiva, exige uma revisão das práticas que as submetem à condição de adulto em miniatura, de sujeito como um vir-a-ser em maturação que um dia vai ser, de um ser frágil, incompleto, sem poder de escolha e de decisão sobre a vida vivida nas instituições (…)” (BATISTA, 2008, p.54)
Três aspectos centrais demarcam a constituição da Sociologia da Infância: crítica ao paradigma biológico da criança e da infância e da psicologia do desenvolvimento; crítica ao que tradicionalmente vem se definindo como processos de socialização1 durkheimiano2; e a compreensão da criança e da infância como categorias sociais, produtos das contradições sociais que são engendradas na sociedade excludente.
O lugar destinado à criança na sociedade foi e é muitas vezes marcado pelo seu assujeitamento, tarefa que se refaz ancorada por uma ciência pedagógica e psicológica que determina os seus processos de socialização. O argumento de criação de espaços de segregação da criança foi inúmeras vezes reiterado em nome dos processos de socialização. Para Miranda (2001), compreender esses processos pressupõe a análise dos “determinantes históricos e sociais da concepção de criança e escola” (125), vez que a concepção moderna de infância, criação da sociedade burguesa, dissimula a relação social da criança com o adulto e com a sociedade.
O processo de ocultamento ou invisibilização da criança não se dá apenas na relação com o adulto e com a sociedade. Materializa-se, também, no campo das ciências que estudam a infância e a criança, visto que são esses os campos que determinam os padrões de sociabilidade que a criança deve incorporar. A Educação e a Psicologia têm contribuído decisivamente muito mais para a construção de processos de integração da criança na sociedade do que para a construção da sociabilidade. A noção de sociabilidade que vem sendo construída oculta as relações sociais em nome dos processos de integração: “a Pedagogia e a Psicologia têm, quase sempre, tratado o processo de socialização como um estágio de integração da criança na sociedade (…) em conta o que a sociedade espera de seus membros em defesa da manutenção de seus interesses.” (MIRANDA, 2001, p. 130).
Ao tomar a socialização como problema de integração, a criança passou a ser institucionalizada: “a construção moderna da infância correspondeu a um trabalho de separação do mundo dos adultos e de institucionalização das crianças”. (SARMENTO, 2005, p. 367). Esse processo de institucionalização tem operado sob diversas formas, mas, todas elas, em nome da abstração da criança: “ao subsumir a criança no filho, restringe-se a infância à esfera do privado, da família, da casa. A prática contemporânea de prover instituições organizadas por classes de idade (creches e escolas) e de controlar o espaço da rua, reforça a reduzida visibilidade pública de crianças, especialmente das menores, dos bebês.” (ROSEMBERG, 2008, p.299) (G6Cap.3).
Se por um lado na família a criança é deslocada à figura de filho, tornando-se privada, por outro, na escola, ela é deslocada para a imagem de aluno. Tanto em uma quanto em outra operam-se processos de seu afastamento da vida pública. Em síntese, “a construção simbólica da infância na modernidade desenvolveu-se em torno de processos de disciplinação da infância, que são inerentes à criação da ordem social dominante e assentaram em modos de `administração simbólica´”. (SARMENTO, 2005, p. 369). Esse processo obteve da Psicologia e da Educação respaldo científico para a conversão de suas imagens. Assim,
a psicologia, como ciência, tem se configurado, historicamente, como uma área do conhecimento cuja trajetória a vincula estreitamente à educação, inseridos aí os processos de socialização e os processos educativos que se efetivam tanto na família quanto nos grupos, nas instituições, na escola, entre outros, o que pode ser apreendido a partir das suas contribuições. (BITTAR, 2008, p. 91).
No campo da Educação, os estudos de Charlot (1979) são importantes na crítica, desvelamento e compreensão dos modos como a Educação tem convertido os processos de socialização em integração, principalmente quanto toma como naturais as relações pautadas no âmbito do social. Entre elas, está a relação criança-adulto. Assim, “a infância é, portanto, antes de tudo, para a pedagogia, a idade da corrupção; A educação tem, portanto, essencialmente, por papel, lutar contra essa corrupção da criança.” (CHARLOT, 1979, p. 115). Nesse caso, a educação passa a ser vista pela sociedade não só como necessária, mas como imprescindível na constituição de um modelo social e padrões de sociabilidade.
A reflexão crítica sobre os temas da socialização e da institucionalização é importante porque implica pensar o lugar da criança na relação com o adulto. Para a sociedade, “a educação da criança pressupõe, portanto, a autoridade do adulto e a transmissão de modelos; em todos os domínios de sua existência, a criança deve obedecer ao adulto e conformar-se com os modelos que este lhe propõe.” (CHARLOT, 1979, p. 120). Portanto, cabe aos espaços institucionais fazer a síntese desses modelos, processo que ocorre sem considerar que as desigualdades entre crianças e adultos são sociais e não naturais. Isso se dá quando não se levam em consideração a classe social à qual pertence a criança, muito menos as causas que geram a sua desigualdade social. Para o autor, a educação “dissimula e justifica, assim, as formas socialmente inaceitáveis de relação entre a criança e o adulto, quer se trate, aliás, da tirania do adulto ou da tirania da criança.” (CHARLOT, 1979, p. 132).
Mas o modelo de socialização descrito não se faz sem a presença de uma ciência psicológica. Ao contrário, “não é, portanto, a ausência de uma psicologia da criança que explica a concepção tradicional da infância. É, antes, a concepção tradicional da infância que explica a ausência de uma psicologia da criança, e mesmo de uma psicologia, simplesmente.” (CHARLOT, 1979, p. 123). Entender o entrelaçamento desses dois campos, desvelando os modos como produzem os padrões de racionalidade e sociabilidade é tarefa que se coloca na perspectiva de uma postura mais crítica:
a Psicologia tem quase sempre tentado explicar como a criança se socializa, abordando o processo pelo qual ela se transforma em ser social. A Psicologia não supera, portanto, o antagonismo entre indivíduo e sociedade. Não tem por objetivo uma análise dialética das relações entre a criança e a sociedade, numa perspectiva de totalidade e historicidade. Assim o processo de socialização da criança é concretamente determinado pela sua condição histórico-social. Além disso, enquanto sujeito da história, a criança tem a possibilidade de recriar seu processo de socialização e através dele interferir na realidade social. (MIRANDA, 2001, p. 131).
Se o campo educativo tem tratado da socialização das crianças de forma a “transformar os problemas sociais em pedagógicos” (CHARLOT, 1979, p. 144), o campo psicológico também tem somado esforços no sentido legitimar determinados padrões de sociabilidade. Nos dois casos, trata-se de um “processo ideológico de camuflagem e de justificação.” (CHARLOT, 1979, p. 144). Nesse campo, as condições materiais de vida, as formas de exclusão das crianças, bem como a sua dimensão são desconsideradas. Portanto,
as teorias psicológicas que informam o campo educacional, em sua maioria, enfatizam o estudo do indivíduo e da individualidade omitindo as determinações sociais sobre o psiquismo, em que o princípio explicativo de constituição do indivíduo se sobrepõe ao contexto social e histórico. Dessa forma, a psicologia estuda um indivíduo abstrato, naturalizado, constituído a priori, em que se dissimulam as relações de individualidade omitindo as determinações sociais sobre o psiquismo, em que o princípio explicativo de constituição do indivíduo se sobrepõe ao contexto social e histórico. Dessa forma, a psicologia estuda um indivíduo abstrato, naturalizado, constituído a priori, em que se dissimulam as relações de dominação política e exploração econômica, negando a condição de classe social, concreto e histórico. (BITTAR, 2008, p. 92).
NOTAS
1 Sobre a crítica da Sociologia da Infância aos processos de socialização defendidos pela Sociologia, Sirotá (2001), adverte: “é principalmente por oposição a essa concepção da infância, considerada como um simples objeto passivo de uma socialização regida por instituições, que vão surgir e se fixar os primeiros elementos de uma sociologia da infância. Isso deriva de um movimento geral da sociologia, seja ela de língua inglesa ou francesa, de resto largamente descrito, que se volta para o ator, e de um novo interesse pelos processos de socialização. A redescoberta da sociologia interacionista, a dependência da fenomenologia, as abordagens construcionistas vão fornecer os paradigmas teóricos dessa nova construção do objeto. Essa releitura crítica do conceito de socialização e de suas definições funcionalistas leva a reconsiderar a criança como ator.” (SIROTÁ, 2001, p.9).
2 É importante apontar que a Sociologia da Infância surgiu oficialmente em 1990, no Congresso Mundial de Sociologia, na Europa, justamente na crítica interna do campo da Sociologia que procurava retirar a temática da infância da sua ausência, abstração ou assujeitamento no campo do pensamento das suas correntes clássicas. Assim, no mapeamento e estudos das correntes francófona e anglosaxã, tiveram, respectivamente, papel importante autoras como Sirotá (2001) e Montandon (2001). Dessa forma, “a constituição e legitimação do campo científico da Sociologia da Infância está em curso em todo o mundo, desde há pouco mais de uma década. O desenvolvimento recente deste campo de estudos acompanha os progressos verificados no plano internacional, onde a Sociologia de Infância foi reconhecida como o mais recente Comité de Pesquisa da ISA (Associação Internacional da Sociologia) e um dos últimos grupos de trabalho a ser criados no interior da AISLF (Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa). Também em Portugal o campo se encontra em constituição, tendo já originado os primeiros cursos de pós-graduação e produzido teses, números temáticos de revistas científicas (Fórum Sociológico, 2000 e Educação, Sociedade e Culturas, 2002) e projectos de investigação na área. A constituição do campo concretiza-se na definição de um conjunto de objectos sociológicos específicos (no caso vertente, a infância e a criança como actor social pleno), um conjunto de constructos teóricos de referência e um conjunto de investigadores implicados no desenvolvimento empírico e teórico do conhecimento”. (SARMENTO, 2005, p. 362).
REFERÊNCIAS
BATISTA, Rosa. Cotidiano da Educação Infantil: espaço acolhedor de emancipação das crianças. In: SILVA FILHO, João Josué; ROCHA, Eloisa Acires Candal (Orgs.). Revista eletrônica zero – a – seis, v.1, n. 18, Jan/Jul. 1. ed. Florianópolis: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância – NUPEIN, 2008.
BITTAR, Mona. A relação psicologia e educação e a instrumentalização das teorias psicológicas. In: RESENDE, Anita Cristina Azevedo; MIRANDA, Marília Gouvea. (orgs) Escritos em Psicologia, educação e cultura. Goiânia: Editora da UCG, 2008.
CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
MIRANDA, Marília Gouveia de. O processo de socialização na escola: a evolução da condição social da criança. In: LANE, Silva & CODO, Wanderley (orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
NASCIMENTO, Anelise; BARROS, Camila; NUNES, Maria Fernanda; SIQUEIRA, Rejane; FREITAS, Rosaura. Vai ter futebol? Interações sociais na educação infantil em escolas de ensino fundamental. In: KRAMER, Sônia (Org.) Retratos de um desafio – crianças e adultos na Educação Infantil. 1. ed. São Paulo: Ática, 2009.
ROSEMBERG, Fúlvia. Crianças e adolescentes na sociedade brasileira e a Constituição de 1988. In: OLIVEN, Ruben george; RIDENTI, Marcelo; BRANDÃO, Gildo Marçal. (Orgs.). A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: Hucitec, 2008.
ROSEMBERG, Fúlvia; MARIANO, Carmem Lúcia Sussel. A convenção internacional sobre os direitos da criança: debates e tensões. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
SARMENTO, Manuel Jacinto. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância. In: Revista Educação e Sociedade. Campinas, vol. 26, n. 91, Maio/Ago. 2005.
SIROTÁ, Regine. Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. In: Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas. n. 112, São Paulo: mar., 2001.
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