Categorias de Estudo: Direitos, participação, agência social, intersetorialidade, cidadania intima, protagonismo
O GEPCEI defende a perspectiva de considerar o melhor interesse das crianças, dando-lhes voz e vez. Trata, sobretudo, da defesa de direitos na infância e para a criança. Nesse sentido, é preciso delimitar aqui o significado do direito na infância, bem como seus processos de consolidação ou negação na sociedade contemporânea. Siqueira (2011) aborda que o século XX foi o século da criança, pois as questões que se ocupavam do tema ganharam visibilidade, inclusive no Brasil. Nesse aspecto, a legislação brasileira dá importantes passos com referência à criança, seguindo a tendência internacional. Foi neste século que a questão dos direitos universais da pessoa humana, especialmente quanto à peculiaridade da criança e da infância, ganha força enquanto política de proteção, marcada pela elaboração da Declaração dos Direitos da Criança, em 1924 e pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (UNCRC),em 1989. A Convenção dos Direitos das Crianças (CDC), da qual o Brasil é signatário, caracteriza-se como um importante documento para a efetivação dos direitos das crianças. De acordo com Fernandes (2009), com base na CDC, podem-se considerar três categorias de direitos que norteiam a discussão acerca dessa temática. Trata-se da articulação dos três “p” que assim se constituem:
Direitos de provisão – implicam a consideração de programas que garantam os direitos sociais da criança, nomeadamente o acesso de todas à saúde, à educação, à segurança social, aos cuidados físicos, à vida familiar, ao recreio e à cultura.
Direitos de proteção – implicam a considerar de uma atenção diferenciada às crianças e de um conjunto de direitos acrescidos, de que, por motivos diversos, nomeadamente situações de discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito, se encontrem privadas ou limitadas no exercício dos seus direitos.
Direitos de participação – implicam a consideração de uma imagem de infância ativa, distinta da imagem objeto das políticas assistencialistas, à qual estão assegurados direitos civis e políticos, nomeadamente o direito da criança a ser consultada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o direito a tomar decisões em benefício, direitos que deverão traduzir-se em ações públicas a ela direcionadas que considerem o seu ponto de vista. (FERNANDES, 2009, p. 41-42).
Sarmento e Pinto (1997) corroboram com essa ideia e afirmam que, dentre os três “p”, o que menos apresenta progresso mediante a construção política, na organização e na gestão das instituições que trabalham com crianças, é o da participação. Esta é ainda uma fragilidade na garantia e efetivação dos direitos. Entre os três “p”, recai a ênfase na Proteção. Esse argumento pode ser explicado a partir da defesa do senso comum de que as crianças precisam de proteção, porque não podem agir com maturidade. Reside nesta ideia a concepção de uma criança frágil, incapaz e incompetente.
O GEPCEI compreende que a concepção de criança como sujeito de direito é um importante dispositivo para entender e compreender a criança. Porém, SIQUEIRA (2011) chama a atenção para o cuidado de não tomar a criança somente pelo aspecto jurídico-legal, pois esta perspectiva corre o risco de transformá-la em pessoa abstrata e instrumentalizada. Reconhecer as crianças como sujeitos de direitos é afirmá-las como participantes de um mundo no qual sua palavra, sua ação, sua cultura e sua história tem sentidos e significados. Isso implica respeitá-las e ouvi-las. De modo igual, pressupõe que afirmar criança como sujeitos de direitos requer obrigações públicas que permitam que elas vivam a infância com dignidade em todos os tempos e espaços.
O pressuposto da criança como sujeito de direito implica também considerá-la como partícipe da ação política-educativa-pedagógica. Todavia, nem sempre estas práticas sociais resultam em ações de ação-participação-transformação da criança. Neste sentido, Soares e Tomás (2009) argumentam que mesmo quando as crianças são consideradas, pelos adultos, como participantes, como tendo direito a ser consultadas sobre as decisões que são tomadas em relação a elas, a menoridade e o paternalismo subsistem, continuando, esta dimensão a estar profundamente dependente de mudanças significativas nas relações de poder entre crianças e adultos. (SOARES; TOMÁS, 2009, p. 5).
A Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) assegura que toda criança, em conformidade com sua faixa etária, é capaz de dar opinião, sendo-lhe assegurado o direito de fazê-lo de forma livre e ao mesmo tempo lhes garantindo o direito de ser ouvida com seriedade sobre os assuntos que lhes dizem respeito. Neste sentido, Soares, Sarmento e Tomás (2005a), referem-se à participação das crianças como sujeitos ativos, capazes de participarem das decisões que lhes digam respeito: […] tal como no caso dos adultos a participação democrática não é um fim em si mesma. É essencialmente o meio através do qual se consegue atingir a justiça e se denunciam os abusos de poder […], ou seja, é um direito processual que permite à criança enfrentar os abusos e negligências dos seus direitos fundamentais e agir no sentido de promover e proteger tais direitos. (SOARES; SARMENTO; TOMÁS, 2005, p. 55). No entendimento de Silva (2015), o termo participação refere-se a processos de compartilhamento de decisões que incidem na própria vida como na vida da comunidade. Entende-se, portanto, que a participação é o direito fundamental à cidadania
De acordo com Cussiánovich e Márquez (2002, p.12), “o discurso sobre a participação infantil não só exige a desconstrução das representações sociais sobre a infância, mas a construção daquelas que as recuperam como ator social e político”. Parte da compreensão de que a criança tem um papel ativo na produção dos aspectos que dão sentido à sua vida. Para Hutchby & Moran-Ellis (1998) as crianças são “agentes ativas que possuem e podem asseverar complexas competências sociais por direito próprio” (p. 8). Sendo assim, “competência social é vista como algo que crianças trabalham para possuir em seu próprio direito, uma demonstração do que é uma conquista ativa, atuante.” (p. 14).
Já para Moran-Ellis, 2010 e Newman et al., 2009 a perspectiva de dar voz às crianças implica ouvi-las não somente no sentido acima referido, de produção de interpretações sobre a realidade, mas, também, no que se relaciona aos aspectos próprios de construção da realidade. Argumentam que competência social não é um fenômeno individual que possa ser traçado num desenvolvimento linear, mas uma questão intrinsecamente contextual. De acordo com os autores, as arenas de ação das crianças são a família, o grupo de pares (arena de fala e interação) e a arena de conhecimento institucional.
O GEPCEI entende que os estudos e pesquisas sobre os direitos das crianças se faz necessário em tempos de (des)construção de direitos. Apropriando-nos das palavras de Norbert Bobbio, quando afirma que “os direitos humanos, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caraterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem todos de uma vez por todas” (BOBBIO, 2004, p. 5), consideramos sobremaneira urgente remeter estes pressupostos para a luta pelos direitos da criança. As crianças continuam a confrontar-se, no exercício da sua condição de sujeitos ativos de direitos, com “velhos poderes”, que alimentam retóricas adultocêntricas, excludentes e nada respeitadoras da alteridade dos seus direitos, que limitam as suas possibilidades de se assumirem como sujeitos e autores de sua vida. Ainda, porque, temos aprendido neste início de século XXI, que o caminho pela consolidação da democracia e da cidadania é sinuoso, não se podendo considerar a luta ganha pelo simples fato de ter havido algumas conquistas.
É nesse sentido que o GEPCEI busca estabelecer articulações entre educação e políticas públicas, particularmente aquilo que orienta a Educação da Infância na arena/campo das políticas educacionais. Trata, sobretudo, da afirmação de direito. A Educação da Infância visa aos processos de desenvolvimento integral dos sujeitos. Portanto, da mesma forma em que é preciso falar em diálogo, articulação e proposição entre as Etapas da Educação Básica, também é necessário reafirmar aqui o sentido da Educação da Infância como um bem público, como bem comum, ou seja, para todas as crianças, independentemente de qualquer condição econômica.
A educação é uma política pública que precisa ser tratada no campo do direito. E, de modo particular, do direito público social. Para Dourado e Oliveira (2009), conceber a educação como direito social se contrapõe à ideia de educação como mercadoria, já que debater tais questões remete à apreensão de um conjunto de determinantes que interferem, nesse processo, no âmbito das relações sociais mais amplas, envolvendo questões macroestruturais, como concentração de renda, desigualdade social, educação como direito, entre outras […] Em outras palavras, é fundamental ressaltar que a educação se articula a diferentes dimensões e espaços da vida social sendo, ela própria, elemento constitutivo e constituinte das relações sociais mais amplas. A educação, portanto, é perpassada pelos limites e possibilidades da dinâmica pedagógica, econômica, social, cultural e política de uma dada sociedade. (DOURADO e OLIVEIRA, 2009, p. 202) Sendo assim, há de se ter claro que nenhuma política pública da infância ou para ela se constitui por si mesma. Ela precisa estar articulada a outras políticas públicas e, para que isso se efetive, faz-se necessário empreender o sentido de rede. De acordo com Benelli e Costa Rosa (2010, p. 32), “compor uma rede, portanto, implica compromisso de realização conjunta de ações concretas, transpondo fronteiras geográficas, hierárquicas, sociais e políticas.”
Tomar a Educação da Infância como uma política pública requer uma opção política em defesa do direito das crianças de se socializarem, de serem cuidadas e de aprenderem em espaços públicos com qualidade social. A qualidade social se contrapõe à qualidade total, uma vez que esta última privilegia os resultados, o produto e o quantitativo. A qualidade social da/para a infância implica considerar os aspectos externos que determinam políticas públicas de qualidade para a educação:
Assim,
a educação, quando apreendida no plano das determinações sociais e relações sociais e, portanto, ela mesma constituída e constituinte destas relações, apresenta-se historicamente como um campo de disputa hegemônica. Esta disputa dá-se na perspectiva de articular as concepções, a organização dos processos e dos conteúdos educativos na escola e, mais amplamente, nas diferentes esferas da vida social, aos interesses de classe. (FRIGOTTO, 1999, p. 25)
O GEPCEI entende que seus objetos de estudo e pesquisa são apanhados em uma arena/campo de disputa que tem suas bases na concepção de Estado ampliado em que se dá a articulação entre a sociedade civil e a sociedade política. A compreensão ampliada de estado considera as condições da existência material e as políticas públicas que são orientadas e redefinidas por determinados compromissos e por opções políticas que se estabelecem no âmbito de uma determinada constituição de Estado. Para Manacorda (1990), na correlação de forças que se trava na sociedade civil ou em organismos privados (voltados para exercer a hegemonia ou o governo jurídico), movimentam-se diferentes planos macroestruturais que norteiam a disputa dos campos e dão tecitura ao tipo de Estado em seu sentido ampliado.
A ideia de um Estado ampliado leva em consideração “o conjunto produtivo e moralidade das massas. O Estado integral pressupõe a tomada em consideração do conjunto dos meios de direção intelectual e moral de uma classe sobre a sociedade, a maneira como ela poderá realizar sua ‘hegemonia’, ainda que ao preço de equilíbrios de compromissos” (BUCI-GLUCKSMANN, 1980 p. 127).
Nesse sentido, o GEPCEI entende que os pressupostos de uma Educação da Infância dizem respeito a princípios, valores, legislação e práticas que compreendem a importância de um trabalho que não separa e regula a infância, vista como um tempo social da vida, em diferentes etapas da educação. Ainda que do ponto de vista da organização da educação brasileira o atendimento educacional à infância esteja dividido e situado entre Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, o que se quer aqui é pensar em Políticas Intersetoriais articuladas entre estas duas etapas, tendo em vista o reconhecimento dos processos de aprendizagem e desenvolvimento integral das crianças.
A educação infantil é, portanto, uma arena e um campo de luta. A noção de arena é aqui tomada como espaço de luta. Já a noção de campo é tratada como jogo de forças que se dá em determinadas arenas de luta. Parte daquilo que expressa as ideias de Pierre Bourdieu em que se movem diferentes sujeitos e seus interesses dentro do campo e em relação a outros. Bernard Lahire (2002) faz uma síntese das principais ideias de Bourdieu sobre a noção de campo:
a) um campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social (nacional) global; b) cada campo possui regras do jogo e desafios específicos, irredutíveis às regras do jogo ou aos desafios de outros campos; c) um campo é um sistema ou um espaço estruturado de posições; d) esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as diversas posições; e) as estratégias dos agentes são entendidas se as relacionarmos com suas posições no campo; f) entre as estratégias invariantes, pode-se ressaltar a oposição entre as estratégias de conservação e as estratégias de subversão (o estado da relação de força existente); g) em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma ‘cumplicidade objetiva’ para além das lutas que os opõem; h) logo, os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se reduzem ao interesse de tipo econômico (LAHIRE, 2002, p. 47-48).
É no campo e na arena que a luta pela defesa das crianças se faz necessária em tempos de destituição de direitos. Por elas nossa luta e nossa voz!
REFERÊNCIAS:
BENELLI, S. J.; COSTA-ROSA, A. A construção de redes sociais: entre a conexão e a captura na gestão dos riscos sociais. In: CONSTANTINO, E. P. (Org.). Psicologia, estado e políticas públicas. Assis-SP: UNESP, 2010.
BENELLI, S. J.; FERRI, G. G.; JUNIOR, N. F. Problematizando a noção de rede, suas origens e algumas de suas aplicações atuais. Revista de Psicologia da UNESP. São Paulo, v. 14, n. 2, 2015.
BOBBIO, N. A era dos direitos. 7 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. SHEPER-HUGLES, N.; SARGENT, C. Introduction to the cultural politics of childhood. In: SHEPER-HUGLES, N.; SARGENT, C. (Eds.). Small wars: the cultural politics of childhood. Berkely: University of California Press, 1998.
BUCI-GLUKSMANN, C. Gramsci e o Estado. Trad. de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. (Coleção Pensamento Crítico; v. 39).
DOURADO, L. F.; OLIVEIRA, J. F. de. A qualidade da educação: perspectivas e desafios. Cadernos Cedes. Campinas-SP, v. 29, n. 78, p. 201-215, maio/ ago. 2009.
FERNANDES, Natália. Infância, direitos e participação: representação, práticas e poderes. Braga: Afrontamento, 2009.
FRIGOTTO, G. Educação e a crise do capitalismo real. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
HUTCHBY, I; MORAN-ELLIS, J. (eds.) Children and social competence. Arenas of action. London, The Falmer Press, 1998. JAMES, A; PROUT, A. Constructing and Reconstructing Childhood. Contemporary issues in the Sociological Study of Childhood. London, Routledge Falmer, 1990. MAYALL, B. A History of the Sociology of Childhood. London, Institute of Education Press, 2013.
LAHIRE, B. Reprodução ou prolongamentos críticos? Educação & Sociedade. Campinas-SP, v. 23, n. 78, p. 37-55, abr. 2002.
MANACORDA, M. A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manoel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manoel. (Org.). As crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Ninho, 1997.
SILVA, Adriana Aparecida Rodrigues da. A participação das crianças na roda de conversa: possibilidades e limites da ação educativa e pedagógica na educação infantil. 2015. 237 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2015.
SILVA, M. A. da. Qualidade social da educação pública: algumas aproximações. Cadernos Cedes. Campinas-SP, v. 29, n. 78, p. 216-226, maio/ago. 2009.
SIQUEIRA, Romilson Martins. Do silêncio ao protagonismo: por uma leitura crítica das concepções de infância e criança. 2011. 222 f. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.
SOARES, Natália Fernandes; SARMENTO, Manuel Jacinto; TOMAS, Catarina. Investigação da infância e criança como investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças. Nuances. Presidente Prudente: v. 12, n.13, p. 49-63, jan./dez. 2005a.
SOARES, Natália Fernandes; TOMÁS, Catarina. O Cosmopolitismo infantil: uma causa (sociológica) justa. Revista eletrônica zero-a-seis, Florianópolis, v.11.n.20.jul. /dez.2009.
Quer receber comunicado das publicações nesse site?